Introdução


Cem textos de história indiana
fecha minha trilogia de livros fontes, iniciada com Cem textos de História Chinesa e continuada com Cem textos de História Asiática. Como disse desde o primeiro volume, a idéia desses livros é de suprir a lacuna existente, em nosso país, de livros fontes que sirvam de base para os estudos acadêmicos, bem como, para apresentação de autores fundamentais dessas civilizações.

Contudo, apesar de me considerar um orientalista, não sou um indólogo profissional, tendo apenas algum conhecimento sobre essa civilização. A necessidade (ou, a ausência) de estudos nesse campo me fez, por vezes, estudá-lo, para discutir o tema em eventos, palestras ou cursos, mas... Esbarrávamos sempre no problema da continuidade, causada pela ausência de fontes e de manuais. Se hoje pululam cursos de chinês, são ainda raríssimos os que estudam sânscrito (e nesse ponto a Índia sofre a desvantagem de ter inúmeros idiomas dentro do país, ao contrário da China); além disso, são poucos os manuais de história indiana e as fontes disponíveis para tal. Via de regra, tem que se recorrer ao inglês (e a internet) para conhecer algo sobre essa civilização. É muito difícil atrair curiosos ou estudantes assim; e a partir disso, a indologia séria rende-se ao esoterismo, que nada esclarece e a tudo torna um mistério.

Longe de mim criticar aqueles que se dedicam seriamente ao estudo das religiões indianas, seja o hinduísmo ou budismo; ao contrário, algumas das pessoas que se embrenharam nesses caminhos tornaram-se excelentes especialistas em línguas orientais, e traduzem textos das doutrinas que praticam com um zelo e cuidado que só se encontra na fé. Porém, essa é uma dimensão restrita; falta um quadro histórico, uma visão de conjunto que traga essas traduções para o âmbito acadêmico. Penso que as pessoas podem ler algo sobre o Budismo, por exemplo, sem precisarem ser budistas; por outro lado, entendo que há uma responsabilidade muito grande entre os educadores em não permitir que essas leituras sejam superficiais, caindo na indistinção dos esotéricos.

Foi assim, pois, que imaginei como construiria essa antologia, tentando resgatar o senso tradicional da civilização indiana. Dona de uma vasta literatura ancestral, a Índia merece uma atenção urgente, dada sua extensão, poder e capacidade de influenciar o mundo. No entanto, é a espiritualidade e o senso ahistórico indiano que a marcam profundamente, e que nos ensinam lições significativas. A Índia é um país formado por vários pequenos países, cujo cimento é sua religiosidade, o sanatana dharma – ou, hinduísmo. Mesmo que hoje ela tenha uma grande parcela de habitantes islâmicos, foi o hinduísmo que estabeleceu os meios pelos quais se poderia caracterizar os indianos como um povo. A sociedade indiana é marcada por esse hinduísmo, que se concretiza em alguns aspectos nítidos, a saber:

- O politeísmo ativo e dinâmico, capaz de dialogar com as diversas religiões do mundo;
- a crença inexorável na reencarnação, seja quais forem as formas ou teorias sobre ela.
- a sociedade de varnas (castas), até hoje existente, por conta dessas mesmas crenças na reencarnação.

Dá calafrios pensar que alguns estudiosos de primeira mão repetem uma velha e batida idéia de que ‘as coisas surgiram primeiro na Índia, depois foram pra China, etc...’, o que é uma baboseira sem tamanho. Enquanto os chineses eram totalmente dedicados a história, sua filosofia tinha horror a metafísica, e suas preocupações eram essencialmente políticas e materiais, a Índia seguiu um caminho contrário, investido num outro senso de orientação calcado na religião, na continuidade, no desprezo da matéria e numa capacidade filosófica de linguagem e metafísica que nada deve aos autores das escolas ocidentais.

Essas considerações podem levar o leitor a emitir juízos de valor sobre a Índia (considerando-a ‘melhor ou pior’ do que outras civilizações) em função de pontos de vista pessoais. Volto a insistir: os mesmo indianos que agora rezam pra Ganesha são alguns dos maiores especialistas em tecnologias atuais. Universidades européias estão lotadas de jovens altamente qualificados vindos da Índia e do Paquistão (que já foi Índia) que entendem dos mais modernos aspectos da física, informática e ciências. Alguém poderia objetar dizendo: ‘ah, mais isso foi descoberto pelos ocidentais’, ao que eu posso responder com as seguintes perguntas: mas como essa civilização conseguiu, em tão pouco tempo, alcançar esse nível de qualificação, não tendo ‘inventado’ nada disso? E ainda, porque em tão pouco tempo eles superam o Ocidente, que a princípio, criou essas tecnologias?

De fato, acredito que uma olhar mais curioso (e carinhoso) sobre as fontes indianas mostrará o perfil de uma sociedade densa, profunda, capaz mesmo de questionar a Deus e aos deuses quando eles ainda se formavam no imaginário dessa cultura. Sensível, laboriosa, tradicionalista e espiritual, a Índia é o retrato de um passado que se desenvolve até os dias de hoje, e que serve de questão fundamental para a re-elaboração de nossas teorias e propostas históricas.


Quadro histórico das fontes

Ao pensar num critério para apresentar as fontes indianas, existiam novamente dois caminhos a seguir: um, apresentá-la dentro dos moldes tradicionais indianos, extremamente funcionais para o entendimento do hinduísmo, mas pouco adequados a compreensão histórica da sociedade; o outro seria repetir, de algum modo, o esquema já utilizado em Cem Textos de História Chinesa, cujas áreas temáticas agrupariam um conjunto de textos diferentes.

Optei novamente pelo segundo esquema por algumas razões; primeiro, que os textos indianos são vastos, e alguns se propõem analisar temas diversos; segundo, que poderia fazer uma apresentação esquematizada e cronológica dos textos, representando sua evolução.

No entanto, esse segundo aspecto diluiu-se no fato de que alguns textos são lidos há séculos, e continuam sendo lidos, pelos indianos. Além disso, existem somente suposições de quando foram escritos, mas poucas certezas. Resta ainda a consideração de que quase toda essa literatura era oral, e só foi ser ‘escrita’ séculos e séculos depois de sua produção (o grande ‘boom’ da fixação gráfica dos textos se dá, a principio, em torno dos séculos +11 +12). Isso se dá em função do senso histórico indiano, que sempre privilegiou o sentido dos textos do que, propriamente, sua datação. A preocupação indiana fundamental – o problema do karma, e da existência material – fê-los crer que o importante nessa literatura era a preservação da mensagem, que se constitui nos meios pelos quais se escapa do ciclo de reencarnação. A redação dos eventos históricos seria uma mera repetição de casos já conhecidos pelos sábios, e portanto, desnecessária de ser narrada. As histórias fundamentais seriam aquelas cujo valor religioso determinava sua verdade.
Desse modo, imaginei que um quadro das fontes indianas deveria responder a algumas necessidades de apresentação, que escapassem aos seus critérios tradicionais, mas que fossem eficazes no entendimento das propostas dessa literatura indiana.

Num primeiro grupo, existem os textos religiosos fundamentais, os Vedas e os Upanishads. Os primeiros tratam da religiosidade ancestral da Índia, no tempo da formação dessa civilização (em torno do século -20), em que se apresentam seus deuses, mitos e práticas. Estão lá o politeísmo primitivo, as perspectivas da sociedade ariana, o culto ao suco sagrado – o soma, a divisão dos deuses, as especulações primeiras. Os primeiros vedas são apenas três – rig, sama e yajur veda. O atahrava veda, basicamente um livro de encantamentos, só seria adicionado em torno do século – 4 -3, o que mostra quanto tempo ele demorou a ser incorporado nos cânones tradicionais.

Já os upanishads são a conclusão de um longo processo especulativo dentro da religião indiana, que delineia o surgimento de todas a dúvidas metafísicas que fomentaram o surgimento da filosofia indiana (darshanas). Surgidos em torno do século -7, contam-se as centenas.

Entre os vedas e os upanishads, existiram ainda os aranyakas e os brahmanas. Os primeiros são a base dos upanishads, pois se tratam das especulações feitas pelos primeiros ascetas que fugiam da sociedade mundana em busca de sabedoria. Já os brahmanas organizaram as crenças mitológicas indianas, dando-lhes uma estrutura constitutiva.

É interessante notar como se amontoam, nestes textos, as diferentes visões de realidade que vão se constituindo ao longo da história indiana. Coexistem, por exemplo, vários mitos de criação do universo, o que demonstra uma incrível capacidade de tolerância e a aceitação de diferentes perspectivas sobre um mesmo tema que fomentariam o caráter religioso indiano.

A sociedade indiana se consolidou, contudo, num esquema teórico que determinava quatro grandes conceitos fundamentais na existência humana: dharma (lei religiosa), artha (lei social), kama (desejo, paixões e vida matrimonial) e moksha (a libertação espiritual dos três). Para elucidar esses conceitos, naturalmente os indianos consolidaram suas análises em um segundo grupo de três textos fundamentais, que seriam:

- As leis de Manu (manavadharmashastra), que constituiria um texto escrito pelo suposto fundador da humanidade, Manu, sobrevivente do dilúvio universal, explicando todos os deveres religiosos do ser humano;
-A lei social (arthashastra), escrita por Kautylia (ou, Chanakya), que analisaria toso os aspectos e deveres da vida material em sociedade.
- o livro do desejo (ou amor, o kamasutra), cujos capítulos dedicam-se quase inteiramente a questão das relações entre homem e mulher (sendo o aspecto da prática sexual absolutamente secundário, ao contrário do que pregam as versões ocidentais...).

Esses livros foram escritos nas mais diferentes épocas; durante séculos as leis de manu serviram para elucidar os três aspectos; no entanto, no século -4, o surgimento do livro da lei social evidenciava-se uma reformulação do entendimento desse conceito na sociedade. Do mesmo modo, o kamasutra surgiu como um texto para encerrar as questões sobre o problema do desejo, tendo em vista que kama (desejo) é uma parte integrante da vida social.

Enquanto isso, foram vários os textos hinduístas, budistas e jainistas que surgiram para libertar o ser humano de sua escravidão espiritual. Seria impossível, pois, agrupá-los. Só podemos deles apresentar alguns fragmentos dos movimentos mais importantes.

Do mesmo modo, a questão da história, na Índia, só vem a se modificar radicalmente com a vinda dos ingleses no século 18. Antes disso, os indianos defendiam uma forma histórica similar ao modelo homérico, representado por suas puranas e itihasas, das quais as mais famosas são o mahabharata e o ramayana. Descrevendo acontecimentos históricos e histórias indatáveis, sua proposta se baseia na afirmação de verdade por meio dos exemplos, mas sem a necessidade de comprovações materiais ou textuais (como no caso chinês). A permanência da história em si determina sua validade e veracidade. Se elas fossem falsas, teriam sumido.

Na investigação dessa literatura indiana, notemos ainda o mecanismo da repetição. Vejamos um exemplo: o texto fundamental para entender os rituais da vida cotidiana indiana são os gryhia sutras. No entanto, vários trechos do gryhia sutra são compilados das leis de manu; e ainda, vários desses trechos aparecem em outros documentos (como os puranas, por exemplo). Ao referir-se a essa tradição, os autores dos textos pensavam preservá-la, ao invés de adulterá-la; isso favoreceu em muito o rastreamento da antiguidade de certos costumes e afirmações, em detrimento da originalidade. No entanto, análises criativas que se consolidaram (como a de Shankara) foram de uma inventividade e sensibilidade capazes de praticamente ‘reinventar’ o entendimento das tradições. Isso por si só mostra que não havia estagnação, mas um cuidado extremo em manter o sistema funcionando.

Alguns fragmentos da filosofia indiana aparecem igualmente em nosso livro; fiz questão, aliás, de contrapor esses elementos tradicionais a autores da Índia moderna, que tem representado uma revolução não apenas no pensamento indiano como mesmo, em todo mundo. Pensadores com Raimon Panikkar, Muhammad Yunus ou Vandana Shiva merecem ser conhecidos por suas propostas inovadoras e criativas, mas que não perderam seu alicerce nas tradições.
Por fim, a escolha dos trechos visa representar algumas idéias fundamentais dessa civilização – e dentro da proposta desse livro, foram inevitáveis as omissões. Esperamos, porém, que uma idéia geral sobre a história indiana possa ser construída a partir dessa antologia.


Bibliografia

Em português só existem, até agora, duas antologias da civilização indiana: Hinduísmo, de Louis Renou (Zahar, 1968) é uma antologia excelente desse indólogo sobre o movimento hinduísta, seus principais autores e textos; A sabedoria de Índia e China, de Linyutang (Pongetti, 1958) traz fragmentos de ambas as civilizações, e serve como boa introdução. Em Antologia dos textos indianos apresentamos alguns trechos de ambas as obras.

Como introdução geral a história indiana, sugerimos a página Índia Antiga e o livro de Marilia Albanese, Índia Antiga (Folio, 2009). Uma história geral da Índia, de seus primórdios até os dias de hoje, ainda está por ser feita ou traduzida.

Quem se aventurar no espanhol pode ainda consultar o fantástico Antologia Sánscrita, do mesmo Louis Renou (Barcelona, 1998). É uma tradução do original de 1947, Anthologie Sanskrite. Em inglês, A sourcebook of indian civilization, de N. Ray (2008), Sources of indian tradition de A. Embreee (1988) e A sourcebook in Indian philosophy, de Radhakrishnan (1967) são os meios mais acessíveis para quem ainda não se aventurou nas línguas indianas novas ou antigas. Um quadro geral da literatura indiana pode ser visto nesses dois agradáveis textos, dos quais nos servimos: Dos Vedas ao Kamasutra e A redescoberta da literatura indiana, ambos de Chanda.

Esse humilde trabalho deve demais a esses eruditos. Peço desculpas pelas falhas e omissões.

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